16 Fevereiro 2021
No caso de Bose – o fundador da famosa comunidade monástica que tem problemas com seu sucessor e coirmãos e, portanto, deve ser mandado embora – a Igreja inventa a roda mais uma vez. Em particular para aquele mundo específico representado pelas comunidades monásticas, a reinvenção é de uma roda muito redonda. Ou seja, quando as rixas e os interesses trazem à tona a inutilidade dos ideais proclamados com tanto ardor, emerge o desastre das relações humanas.
O comentário é de Fabrizio Mastrofini, publicado por Il Riformista, 11-02-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A relação interpessoal por toda a parte, mas especialmente no mundo eclesiástico, é realmente um problema. Porque, no mundo eclesiástico, a bondade está inserida no “contrato de trabalho”: é preciso ser bom e paciente como cristão. Mas, depois, como não conseguimos fazer isso, então, em palavras, nos declaramos bons e, no máximo, pecadores, mas, nos fatos, fazemos os nossos opositores ou rivais pagarem caro por isso. E sempre de mãos dadas, fingindo que estamos fazendo isso pelo seu bem.
Complicado? Irrealista? Profanador demais?
Bem, o caso de Bose é impressionante. Já não se consegue mandar Enzo Bianchi embora desde maio de 2020, e nem a autoridade do Visitador Apostólico produz efeito. Embora Bianchi tenha aceitado se mudar para outro lugar, ele permaneceu lá.
Agora, o último decreto divulgado graças ao site católico Settimana News (que deu a notícia) é bastante bizantino. Basicamente, Bianchi teria aceitado ir para Cellole, perto de San Gimignano, em outro dos eremitérios ligados a Bose. O golpe de gênio veio logo depois: Cellole acolhe Bianchi e um grupo de monges que o auxiliam (ele é idoso), mas a localidade deixa de fazer parte dos mosteiros de Bose. Ele é cedido em “comodato de uso” (mas onde já se ouviu algo assim?), e os monges que estavam lá se mudarão para outro lugar. Agora, esperemos que o ex-prior (mas sempre fundador) se mude. Sabe-se lá se ele realmente se mudará.
Até mesmo o Visitador Apostólico se pronuncia, e a sua decisão é publicada pela imprensa católica com um certo destaque. A passagem-chave do decreto está aqui: “Depois de muitas tentativas voltadas a facilitar ao Ir. Enzo Bianchi a obediência (ao decreto de maio que previa o seu afastamento) (...), no último dia 4 de janeiro de 2021, o Delegado Pontifício (...) emitiu um Decreto (notificado no dia 8 de janeiro) no qual solicitou à Comunidade Monástica de Bose que: interrompesse por tempo indeterminado os vínculos com a Fraternidade Monástica de Bose em Cellole, situada na localidade de Cellole di San Gimignano, que, portanto, foi fechada e não pode ser considerada como Fraternidade da Comunidade Monástica de Bose, até que se decida de outra forma”.
Segunda decisão: “Ceder em comodato de uso gratuito o complexo imobiliário de Cellole ao Ir. Enzo Bianchi, que para lá se transferirá até e não depois da terça-feira, 16 de fevereiro, já tendo dado o seu consentimento a esse respeito, junto com alguns irmãos e irmãs que manifestaram a sua disponibilidade de ir com ele e se encontrarão na condição de membros da Comunidade Monástica de Bose extra domum”.
E, portanto, os monges que o seguem terão uma permissão especial para continuar fazendo parte de Bose, mesmo estando em outro lugar. É uma obra-prima do “ficar em cima do muro” que não tem fronteiras ideológicas ou religiosas.
Além disso, naturalmente, temos o costumeiro pranto grego: “desculpem-nos... é uma decisão sofrida... etc. etc.”. Mas o fato é que as relações interpessoais aqui trouxeram à tona um fracasso em níveis muito elevados. Muito além da Fraternidade de Bose (ou de qualquer outro lugar); a diatribe tem na base relações que deixaram de funcionar porque ninguém sabe como as colocar em ordem.
E o conhecido professor e comentarista Alberto Melloni pouco tem a se esgoelar nas colunas do jornal La Repubblica. A geopolítica católica não tem nada a ver com a história. Teria a ver com se o confronto ou o desacordo tivesse surgido sobre o tema geral do ecumenismo (assunto sobre o qual Bose tem uma grande tradição) ou sobre questões específicas do diálogo com os ortodoxos ou com outras confissões cristãs.
Não, aqui, em vez disso, estamos em uma história totalmente diferente: um fundador que, primeiro, entende a necessidade de se afastar (ele é fundador, não tem como permanecer eternamente no comando, dada a sua idade) e, depois de algum tempo, se dá conta de que, na verdade, tem um capacidade zero de realmente se afastar. Mas, no meio dos seus coirmãos, nomearam outro prior – levaram a sério a renúncia – apenas para descobrir que não se consegue chegar a um acordo.
É claro que se afastar quando você fundou algo único é difícil. É claro que a culpa é inteiramente assumida por Enzo Bianchi. Talvez descubramos no futuro que alguém se aproveitou do fato de ele ter abandonado a liderança para fazer com que ele pagasse algumas contas em suspenso.
Além disso, não está claro como se entra em Bose e como se permanece lá; não está claro quais são os critérios de admissão e se alguma avaliação dos candidatos e das candidaturas é implementada. O mundo católico (e não só) está bem abastecido de pessoas que querem mudar o mundo – em palavras – enquanto, na realidade, querem abrir caminho e gerir o poder. Talvez em Bose não haja os contrapesos necessários.
Pretendo enfatizar uma ideia simples e complexa. Para entrar no seminário, é necessário submeter-se a uma prática bem regulada (pelo menos no papel), e, em todo o caso, existem alguns critérios para aceitar as pessoas ou rejeitar quem tem fragilidades psicológicas excessivas. Quanto a Bose, não se sabe nada sobre os critérios de admissão, e, portanto, podemos legitimamente esperar uma baixa capacidade de gerir os conflitos. Aqueles conflitos interpessoais que têm a capacidade de destruir e envenenar qualquer realidade quando não são geridos.
Portanto, Melloni erra ao ler o caso sob o pano de fundo de uma complexa geopolítica eclesial. Mas a complexidade existe em uma direção totalmente diferente e diz respeito à complexidade relacional; a situação poderia ter sido resolvida se tivesse sido gerida melhor.
Devem ser sublinhados dois aspectos do porquê a Igreja em geral não é capaz de enfrentar os conflitos relacionais. Acima de tudo, porque ela sempre os nega e acha que, com o arrependimento, se resolvem todos os problemas. Não é assim, longe disso. Os conflitos devem ser enfrentados, eles representam o sal das relações humanas. Não basta dizer que se pertence à mesma fé para entrar em acordo. O acordo deve ser buscado com esforço, com paciência e com método. Não deve ser coberto pela ideologia “boazinha” de que todos fazemos parte de uma mesma Igreja, pelo simples motivo de que não é suficiente dizer disso; é preciso ver quais são os comportamentos concretos e quais sentimentos negativos são negados, enquanto permanecem lá destruindo as relações. Os sentimentos negativos de inveja, ciúme, ganância, ódio, rancor existem e devem ser geridos, enquanto geralmente se camuflam.
É preciso desmascarar a regra segundo a qual ninguém suporta alguém, mas se finge que não é nada quando esse “alguém” é o chefe. E, então, ele é boicotado nas decisões ou se fala dele pelas costas. Quando ele deixa de ser o chefe, então todos se lançam contra ele para se desafogarem. História antiga, mas, no terceiro milênio, um pouco triste e démodé.
A outra questão está relacionada à incapacidade de implementar uma psicologia sadia, capaz de ajudar nessas situações. Se o Visitador Apostólico tivesse alguma noção da psicologia das diferenças individuais, talvez tivesse encontrado o fio da meada, em vez de discorrer sobre a “crise de crescimento” de Bose na passagem do idoso bom papai ao jovem filhinho inexperiente. É necessário decifrar a gramática, a sintaxe e o significado das relações e dos conflitos.
Mas aqui também, mesmo sem querer pedir muito, era possível recorrer a outro recurso da psicologia: a psicologia relacional de abordagem sistêmica (na Itália, por exemplo, ela tem expoentes de destaque, mas todos seculares!) certamente teria ajudado a sair desses baixios, em vez de ampliar esse pântano ao ponto de ser ingovernável.
Se alguém pensa que se trata de teorias com pouco fundamento, podemos refletir sobre mais um elemento: além de termos como “fratura”, “dor”, “escândalo” e assim por diante, não veio uma explicação clara do que está acontecendo por parte de Bose-comunidade. O conflito é totalmente relacional, portanto.
E a Igreja inventa a roda: no centro de todas as atividades, estão as relações interpessoais. Não basta rezar para resolver todas as divergências. Ou, melhor, não adianta. Será preciso se tornar capaz, de vez em quando, de experimentar estratégias e procedimentos para crescer do ponto de vista humano.
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Caso Bose: a verdade sobre por que Enzo Bianchi teve que abandonar a comunidade - Instituto Humanitas Unisinos - IHU